Congresso cria desigualdade e dá menos emendas a cidades que mais precisam

Congresso cria desigualdade e dá menos emendas a cidades que mais precisam

A distribuição de emendas parlamentares nos últimos cinco anos foi feita de uma forma que ignorou o nível de necessidades das cidades.

Municípios com graves problemas de infraestrutura e pobreza receberam menos recursos por habitante do que cidades com características semelhantes e melhores índices de desenvolvimento.

Esta é a conclusão de levantamento do UOL sobre a distribuição de R$ 106 bilhões de pagamentos em emendas diretamente a municípios, de janeiro de 2020 a maio de 2025, período em que os recursos atingiram o maior montante da série histórica.

O quadro acima contrasta com o que tem dito o presidente da Câmara Hugo Motta (Republicanos-PB), nas ocasiões em que defende as emendas contra o que chama de “criminalização do instrumento”.

Em 7 de abril, por exemplo, ele afirmou, durante fala na Associação Comercial de São Paulo, que as emendas dão ao Congresso “a capacidade de poder fazer justiça e levar [recursos] a quem mais precisa, aos rincões do Brasil, atendendo à necessidade da nossa população”.

A análise do UOL mostra que as emendas nesses últimos cinco anos chegaram, sim, a praticamente todos os municípios brasileiros. A quantidade recebida por cada um, porém, não apresenta conexão com seus indicadores de desenvolvimento —formados por dados de saúde, educação, renda e infraestrutura.

Com a orientação de cientistas políticos, a reportagem calculou a correlação entre o volume de emendas por habitante de cada município e dois índices que medem o desenvolvimento do município: o IFDM (Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal) e o IPS (Índice de Progresso Social).

A correlação é uma medida de 0 a 1, que mostra como as variáveis se comportam juntas.

Quando não há relação entre as variáveis, o valor fica próximo de zero.

Se as emendas fossem distribuídas de acordo com o critério de indicadores de desenvolvimento, a correlação estaria próxima de 1.

A análise dos pagamentos nos últimos anos mostra, no entanto, uma correlação inferior a 0,3 para ambos os índices.

Isso indica que o nível de desenvolvimento de uma cidade, conforme esses indicadores, pouco influenciou o montante de emendas que recebeu.

Essa situação é diferente do que ocorre com outras políticas públicas geridas pelo governo federal.

Por exemplo, programas como o Bolsa Família (0,8) e o Fundeb (0,6) apresentam uma correlação elevada com os mesmos indicadores de desenvolvimento.

Em outras palavras, quanto menos desenvolvida a cidade, mais recursos ela recebe desses programas.

O UOL também calculou como teria sido a distribuição dos recursos se houvesse uma relação perfeita entre a necessidade (medida pelo IFDM) e a distribuição de emendas.

Caso a divisão de recursos tivesse sido feita seguindo o indicador, 4.001 dos 5.571 municípios brasileiros teriam recebido mais recursos.

Ou seja, a distribuição do dinheiro por critérios políticos concentrou verbas num número menor de cidades.

Monção (MA) tem 27 mil habitantes e recebeu R$ 464 em emendas por morador, desde 2020.

A maior parte da população vive na zona rural, com estradas precárias. Nos períodos de chuva mais forte as crianças não conseguem se deslocar até a escola.

Pelo menos 40% das comunidades no município não têm água encanada, segundo o presidente da Câmara, Daérlio Oliveira (ML).

Zé Doca (MA), cidade a duas horas dali, recebeu R$ 2.950 em emendas por morador —seis vezes o valor per capita de Monção.

Mais desenvolvida e com mais infraestrutura, Zé Doca foi mais beneficiada, embora tenha necessidades menos urgentes.

Contou a favor do município ser governado, desde 2017, por parentes do deputado federal Josimar Maranhãozinho (PL), parlamentar que mais enviou emendas a Zé Doca nos últimos cinco anos.

Se os recursos de emendas tivessem sido distribuídos de acordo com o IFDM, Monção receberia R$ 1.060 por habitante, mais do que o dobro do que recebeu (R$ 464). Já Zé Doca receberia R$ 856, menos de um terço do valor pago à cidade nos últimos cinco anos (R$ 2.950).

O UOL identificou uma série de exemplos dessas desigualdades no volume de recursos entre cidades próximas.

“A lógica dessa alocação [de emendas] não é baseada na necessidade, mas na sobrevivência eleitoral. Cada parlamentar tem redes locais em municípios e, ao longo do mandato, nutre essas redes com dinheiro”, diz Carlos Pereira, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e pós-doutor em ciência política pela Universidade de Oxford.

Oeiras do Pará (PA) é listada nas piores posições em todos os rankings de desenvolvimento dos municípios. Tem grandes carências em indicadores de saúde, educação, renda e infraestrutura.

Com tantas dificuldades, recebeu R$ 4,5 milhões de emendas nos últimos cinco anos, o que equivale a R$ 134 por pessoa, um dos menores valores entre municípios brasileiros.

A cidade é exemplo de um outro tipo de distorção: além de ser preterida por critérios políticos, está no Pará, um dos estados cujas cidades receberam menos emendas proporcionalmente.

Há grande diferença na quantidade de recursos recebida por cada um dos estados.

Em algumas unidades da federação, como o Pará, os recursos de emendas enviados às cidades desde 2020 foram inferiores a R$ 500 por habitante. Em outros estados, como Roraima e Amapá, o valor superou R$ 2.000 por habitante.

Não é coincidência que, entre os dez municípios mais “ricos” em emendas, quatro estejam em Roraima e quatro estejam no Amapá.

Esses estados menos populosos e com poucos municípios têm maior representatividade no Congresso —e, com isso, proporcionalmente mais recursos de emendas para distribuir.

Por exemplo, os três senadores de Roraima têm direito a distribuir anualmente R$ 205 milhões em emendas entre 15 municípios com 636 mil habitantes somados.

Os três senadores de São Paulo têm o mesmo valor para distribuir entre 645 municípios com 44 milhões de pessoas.

Pode-se argumentar que, o estado de São Paulo, por exemplo, é mais rico e tem menor número de cidades de baixo desenvolvimento.

É verdade, mas há estados populosos com grande número de municípios subdesenvolvidos, como Pará, Bahia e Minas Gerais, que acabam sendo prejudicados na divisão de recursos.

Nem todos os recursos estão sujeitos a essa distorção. As emendas individuais e de bancada estadual são mais sensíveis à diferença de representatividade do Congresso e representam 70% dos R$ 106 bilhões analisados pelo UOL.

O restante dos recursos se refere a emendas de comissão e relator —de menor transparência e maior discricionariedade. Esse tipo de emenda é mais suscetível à lógica da negociação política.

No início da década passada, cientistas políticos constataram efeitos benéficos na aplicação dos recursos. “Havia tanto critério técnico quanto político na alocação de emendas”, diz Lucio Rennó, autor de estudo com Carlos Pereira sobre a distribuição de emendas parlamentares de 1998 a 2010.

Mas, já naquele momento, havia indícios de distorções. “Na medida em que o município ia recebendo mais emendas, esse efeito benéfico diminuía”, diz.

E os municípios passaram a receber muito mais dinheiro de emendas desde então.

De R$ 3 bilhões empenhados (reservados no Orçamento) em 2015, as emendas passaram para R$ 45 bilhões em 2024.

No ano passado, R$ 1 de cada R$ 4 investidos pela União veio de emenda parlamentar. Ou seja, uma fatia cada vez maior do Orçamento está seguindo os critérios do Congresso em vez de seguir os critérios de outras políticas públicas do governo.

A crítica de especialistas é que essa alocação de recursos feita pelo Congresso tende a ser menos eficiente. O aumento da parcela do Orçamento destinado por meio de emendas poderia, assim, estar piorando a eficiência do gasto público.

“Se alguém faz um investimento para resolver um problema, usa os indicadores disponíveis para dar mais dinheiro às cidades com notas ruins nessa métrica. Se os congressistas não usam essas métricas [como índices de desenvolvimento], fica mais difícil acertar”, afirma Beto Veríssimo, diretor do Índice de Progresso Social, um dos indicadores de desenvolvimento usados pela reportagem.

Trabalho recente dos economistas Hélio Tollini e Marcos Mendes mostra que não há paralelo, em 11 países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), com o volume de recursos destinados por emendas pelo Brasil.

“Um alto poder de emendar o orçamento gerará pulverização de recursos em pequenos itens de despesa, priorização de projetos políticos individuais em detrimento de políticas públicas de interesse geral, uso de recursos federais para políticas que deveriam ser financiadas pelos governos locais, rigidez da despesa induzindo desequilíbrio fiscal crônico e propensão à corrupção”, diz o estudo.

Não é que as emendas deixem de trazer benefícios para a cidade que as recebem. É certo que trazem.

A questão apontada por especialistas é que os mais beneficiados não são necessariamente os que mais precisam. Quem mais recebe é quem está estrategicamente mais bem posicionado para dar retorno eleitoral aos congressistas.

Cientistas políticos dizem que não há de se considerar certos ou errados os critérios de envio de emendas, mas que a concentração de dinheiro distribuído pelo Congresso traz consequências.

“Você não vai encontrar uma correlação positiva entre necessidade e alocação de recurso porque esse não é o critério que o parlamentar utiliza”, diz Carlos Pereira.

E continua: “Existem verdadeiros municípios esquecidos. Há cidades muito pobres que recebem muito pouco. Por quê? Porque esse parlamentar não tem uma rede local neste município e não tem interesse em enviar recursos para lá”.

Essa matéria usou como fonte uma matéria do site UOL

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